Os camelôs e sua sina

Desde 1824, lojistas e o comércio informal, seja como ambulante ou fixo, travam uma briga de interesses.

Um vendedor ambulante, no Brasil é comumente chamado camelô, é um comerciante de rua geralmente parte da economia informal ou clandestina, com banca improvisada, em especial nas grandes cidades.

A palavra camelô é um galicismo (provém de camelot, em francês, "vendedor de artigos de pouco valor") e muitas vezes é substituída por "marreteiro". Camelô e ambulante são sinônimos, só que o primeiro termo é uma denominação popular e o segundo é uma designação utilizada em legislação que regula o exercício de vendas em um ponto fixo ou em movimento.

Uma cena comum nas grandes cidades brasileiras: camelôs atentos aos agentes de fiscalização urbana e prontos para recolher em segundos, os produtos expostos, evitando a apreensão de suas mercadorias. O que muita gente não sabe (inclusive eu não sabia) é que esta cena é muito antiga, aqui em nosso País.

Uma representação, com aba-assinadoixo, dos comerciantes lojistas de Vitória no Espírito Santo, datada do ano de 1824, pede providências contra o comércio ambulante. Esta representação está guardada na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, e é datada de agosto daquele ano, provando que esse imbróglio entre Economia Formal e Informal vem pelo menos desde o início do século XIX. Há também documentos anexados a esta representação, que mostram que o estabelecimento de uma Lei para solucionar o problema, não foi suficiente.

Segundo a memória estatística da província do Espírito Santo, escrita por Inácio Acioli de Vasconcelos no ano de 1828, Vitória tinha naquele momento 35 estabelecimentos comerciais de “fazendas secas” ou tecidos em geral. Isso indica que o movimento teve uma adesão expressiva, já que há 23 assinaturas no documento dirigido ao Ouvidor e corregedor da Comarca de Vitória, José Libânio de Souza. Após uma medida de aperto fiscal, “dizem os mercadores de lojas desta cidade, que sendo público andarem pelas ruas vários Mascates vendendo fazendas secas a varejo, causando assim, um grande prejuízo a comércio das mesmas lojas, que se vêm na precisão de fecharem suas portas, por não poderem pagar o novo imposto de 12.800 réis pelo atraso que sofrem no seu giro de comércio”.

Em seguida, culpam os Mascates – oriundos de outras localidades e cujo trabalho é, por natureza, itinerante – pela evasão de capitais da província, que vivia, nos primeiros anos após a independência (1822), problemas econômicos: “estes mesmos Mascates só se interessam em venderem suas fazendas, e levarem o seu produto em moeda, ficando assim a Terra cada vez em maior decadência pela falta de numerários, em que se achavam”. Expostos os motivos, solicitam a proibição da atividade em questão e a punição dos que desrespeitarem a determinação com “a pena que Vossa Senhoria for servido arbitrar”.

O julgamento do mérito é registrado na mesma via da Representação: considerada “muito justa” a demanda, é proibido o “semelhante giro de negócio”. As autoridades da época, providenciam, então, a publicação do edital regulamentando a decisão, que também está guardada na Divisão de Manuscritos: “Faço saber a todos os Mascates que sendo-me representado o grave prejuízo e dano pelo atraso que experimentam (...) os Mercadores de Lojas desta Cidade, (...) ordeno que Mascate ou outra qualquer pessoa que acha nesta ocupação, jamais possa de hoje em diante vender as ditas fazendas pelas ruas desta Cidade debaixo da pena de pagar cada um que o contrário fizer a quantia de vinte mil réis para as despesas do Conselho”.

O comércio ambulante de tecidos, entretanto, não é totalmente proibido, mas é empurrado para as regiões marginais, sendo os Mascates autorizados a atuar fora da cidade.  Esta exceção faz lembrar as décadas mais recentes de nossa história, com a instituição dos chamados “Camelódromos”. Como hoje, os legisladores de então, sabiam que havia um desejo de consumo que não podia ser satisfeito pelos canais oficialmente estabelecidos.

O Ouvidor, na falta de melhor recurso de comunicação, garante que a decisão será “publicada pelas ruas públicas e afixada no lugar costumado”.

Essas providências não foram suficientes para pôr um fim à disputa. Os Mercadores de lojas dirigiram-se à Câmara Municipal para tentar impedir a resistência dos Mascates: “agora consta aos suplicantes que apareceram indivíduos requerendo a Vossas Senhorias a fim de obterem licença para continuarem na mesma mascatiação, valendo-se de pretextos frívolos (...) e interesses particulares”. Suplicam então que a matéria seja levada à “augusta presença de Sua Majestade Imperial”, D. Pedro I, para que ele pudesse intervir em favor dos comerciantes.

Dois séculos após a redação desta Representação, sua atualidade permanece evidente. O conflito entre a Economia Formal e a Informal não foi superado e vai muito além de uma proibição e da instituição de multa aos infratores.

Quem nunca viu ou ouviu falar do mascate, do lambe-lambe, do quiosque, do burro sem rabo, da baiana e suas cocadas, do garrafeiro, do amolador de facas, do menino vendedor de jornais, do camelô?

Não há cidade ou vila cujas ruas e calçadas não tenham sido palco do drama cotidiano de ambulantes e feirantes, que com sua algazarra, gritos e pregões enchiam o ar, exercendo uma forma de comércio tão antiga, assistemática e não-formal, em busca da sobrevivência. Intimamente ligado à vida e à evolução das próprias cidades brasileiras.

O burburinho das ruas e feiras, as mercadorias levadas em carroças, nos lombos dos animais e nas costas e braços dos vendedores, os pregões usados para atrair os fregueses ("laranja seleta, quem não sabe ler soletra", "olha a melancia, dona Maria, panela no fogo, barriga vazia”! ), os quiosques, onde o povo comia broas e frituras e bebia cachaça nas folgas do trabalho.

Os camelôs são muitas vezes combatidos pelas autoridades governamentais, entrando frequentemente em conflito aberto com estas, uma vez que, segundo estas autoridades eles: a) vendem produtos muitas vezes contrabandeados e de qualidade duvidosa (normalmente importados da Ásia), ou então produtos piratas/falsificados, copiando marcas e mídias com direitos de autor, e em muitos casos vendem até mesmo produtos roubados; b) fazem mau uso do espaço público (ocupando as calçadas e atravessando a livre passagem dos transeuntes); c) não pagam impostos, ao contrário dos lojistas licenciados (crimes de Sonegação de Impostos e Concorrência Desleal). No Brasil, estimava-se que há uma sonegação de R$ 30 milhões de impostos por ano somente com a venda de camisas e tênis pirateados. Dois milhões de empregos formais deixam de ser gerados com o mercado de produtos piratas; d) em alguns casos, roubam água e luz da rede pública para iluminação da sua banca ou para a produção de alimentos; e) atentam contra a saúde pública, quando vendem alimentos sem procedência comprovada, com prazo de validade e condições de conservação desconhecidas, ou quando vendem produtos para uso corporal falsificados que podem causar danos físicos ao consumidor.

E além de tudo, também são considerados um reflexo de eventuais crescimentos do desemprego, embora seu modo de vida não seja considerado desemprego e sim subemprego.

 

Enquanto isso, meus caros camelôs, permanecem em alerta, porque a qualquer momento pode chegar a senha: Olha o rapa!

 

Formatação e adaptação: Demerval Galvão – Fonte: Lia Jordão – Fundação Biblioteca Nacional; http://www.museuhistoriconacional.com.br/ - Imagem: Fundação Biblioteca Nacional – Postado por Demerval Galvão às segunda-feira, julho 30, 2012 in http://demervalgalvao.blogspot.com.br/. Postado por Demerval Galvão, quarta-feira, dezembro 14, 2016